Amadeo de Sousa Cardoso, " A Máscara do Olho Verde", Óleo, 1915, Col. Sousa Cardoso
O jogo de criança que consiste em esconder um objecto numa mão, para outro adivinhar em que mão está, remete-me muito para este jogo de criticar ou louvar a Primeira República. Abre essa mão pirralha, vês como estava nessa mãozinha querida. Nas crianças é mais fácil, têm uma mini-mão e quando o objecto é grande não há muita volta a dar. Conquanto, é sempre importante fingir um certo desafio, pelo menos nas primeiras dez vezes que jogamos; afinal de contas, é preciso entreter a criança, mas também não desejamos que se torne burra ou manipulável. Ora, se as mãos da história são certamente enormes, qual é o tamanho da Primeira República Portuguesa?
Construir um artigo entre comemorações e jogadores profissionais é sempre arriscado. Para já tenho a vantagem de poder ter lido alguns artigos interessantes, aprender umas palavras novas, reunir um arsenal tecnológico e caseiro de defesas, críticas e piropos.
Ainda assim começo com prudência, tenho em consideração que a Primeira Republica é uma adolescente cativante de 16 anos, protegida portanto pela lei, com um pai mais velho de 90 anos (a monarquia constitucional portuguesa), e uma mãe (Portugal) que corre sempre o risco de entrar em depressão pós-parto. A verdade é que houve pouca paciência para a pequena, logo aos 16 anos a tonta ingressou num colégio militar – maldito estigma! E cem anos depois há quem diga que o pai se devia ter mantido solteiro, entusiasmando-se constitucionalmente, ou com pequenos namoros entre regeneradores e progressistas. Tenhamos um pouco de cabecinha, se uma monarquia mais republicana que aquela não existia, chame-se então os bois pelos nomes e democratize-se o sistema monárquico liberal: República.
Mas que diferenças trazia a Primeira República portuguesa? Primeiramente, é preciso ter consciência que a história não se faz apenas das conquistas, mas também dos seus sonhos, das suas paixões, das suas metades, das especificidades de uma época. Neste sentido, a Primeira República redefiniu efectivamente os símbolos da nação, palavras, imagens, ligações, e cimentou o respeito pelo cidadão. Apesar de tudo, o que ganhou pelo seu idealismo e vontade de fazer história, perdeu pela sua teatralidade, exagero, bem como, carência de um projecto económico eficaz, durante um período histórico convulso a nível mundial.
O desejo de modernizar o país é porém estimável, é um accionar da história que motiva a nação permitindo a sua existência. Contudo, se esta acção suportar o seu peso sobre uma base insípida, servirá apenas para renovar optimismos e confianças, que terminarão certamente em desilusão.
A mudança de regime não é por si só suficiente para activar a história, nem a sua legitimidade se pode defender apontando erros do regime anterior, deve sim elevar-se através das suas próprias vitórias. Pergunto novamente: qual é o tamanho dessa República? Relembro o panfleto de Almada de Negreiros sobre a exposição de Amadeo de Souza-Cardoso (1916): esta era superior à descoberta do caminho marítimo para a Índia e «a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX»; também ela uma modernização da alma lusa. Apesar de tudo, a exposição foi um insucesso, era pois hábito cuspir em telas modernistas e o artista seria apenas recuperado na história muitos anos mais tarde. Amadeo morreria novíssimo, em 1918, e ficava por ali a década com o saldo miúdo mais positivo na criação portuguesa da época. Qual então o saldo da Primeira República portuguesa?
Fernando Pessoa em «Como organizar Portugal» (1919) explicava: «Os homens do nosso tempo, destituídos por completo do senso das realidades, extraviados, por hipotéticos “direitos”, “justiças” e “liberdades”, da noção científica das coisas, não logram, nem mesmo em teoria, visionar a construção da prática. Um século, ou mais, de “princípios de 89”, um século, ou mais, de “liberdade, igualdade, fraternidade” tornou o geral dos europeus, salvo os alemães, obtuso para aquelas noções concretas, com as quais seguramente se constrói o futuro». Claro que seguindo um tom futurista, Pessoa assume que o segredo da organização de uma sociedade progressista é entrar em guerra, e que numa sociedade provinciana - como a portuguesa - a solução está na máquina e educação.
Realmente, festejar a Primeira República portuguesa é festejar o romantismo. A importância de «89» é hoje mais da queda do Muro de Berlim (1989) e não da Revolução Francesa (1789), que obviamente instaurou os princípios democráticos, uma forma de educar e pensar específicas, determinantes na história da humanidade. Não obstante, a Alemanha dá-nos hoje uma outra lição de «89»: a lição da prática. Vinte anos depois da reunificação, a Alemanha é o país mais influente em termos políticos e económicos da zona euro, impulsionando novas regras de jogo mais pragmáticas.
Numa pacífica União Europeia que deixou de ser romântica depois do Holocausto, que é no fundo a raiz da sua identidade, a resposta ao tempo é excessivamente alemã, mas necessária. Ainda bem que não existem alternativas viáveis à República, pois seria uma tentação deliciosa para os mais românticos.
O futuro de Portugal consiste numa identificação honesta com os valores da União Europeia, e com um tipo de democracia que se coadune com o cidadão contemporâneo, global, imagético e interactivo. A dúvida mais imediata é a seguinte: Em qual das mãos está o futuro da democracia: na esquerda ou na direita?
Sérgio Coutinho
Nasce em Lisboa, em 1987, e continua esse processo em todo o lado, autênticos partos semeados, parto aquilo, parto isto, parto daqui para fora, volto ao ventre. Entre adições e subtracções: Licenciou-se em Design na FA-UTL (2008), tem a pós-graduação em História de Arte Contemporânea na FCSH-UNL (2010), iniciou Doutoramento em História de Arte Contemporânea na FCSH-UNL (2009), aventurando-se também no Mestrado de ensino de artes visuais para 3ºciclo e secundário na Lusófona (2010). Nada mais a declarar senão o último pequeno-almoço: http://www.recreioinedito.blogspot.com/
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